O ensino superior e o coronavírus

27/03/2020 23:06

Com a instalação da pandemia causada pela Covid-19, uma das primeiras medidas adotadas por autoridades brasileiras foi o isolamento social. Em todo o país, Reitores das Instituições de Ensino Superior suspenderam atividades acadêmicas e o Ministério da Educação lançou, em 17 de março, a Portaria 343, autorizando:

em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites estabelecidos pela legislação em vigor, por instituição de educação superior integrante do sistema federal de ensino, de que trata o art. 2º do Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017 (BRASIL, DOU, SEÇÃO I, 2020, p. 39).

O Decreto mencionado diz respeito às “funções de regulação, supervisão e avaliação das instituições de educação superior e dos cursos superiores de graduação e de pós-graduação no sistema federal de ensino”. Abrange, portanto, os cursos presenciais e a distância. Como resultado, em algumas instituições, aulas teóricas foram sendo substituídas por estudos dirigidos e os professores responsáveis por tais componentes, passaram a acompanhar os estudantes a distância.

Contudo, tais medidas, válidas por trinta dias, podendo serem prorrogadas, conforme determinação do Ministério da Saúde, causam impactos sociais importantes. Com os projetos de expansão e interiorização do ensino superior, consolidados nos últimos anos, o público das IES federais tornou-se mais amplo do que o alcance das tecnologias da informação. Se os aparelhos celulares e o acesso às mídias sociais é algo difundido, computadores com processadores de texto e internet que permita fluxo de informações de qualidade, não é algo dado em todos os espaços.

Assim, como não é possível ter água na torneira para lavar as mãos ou mais de um cômodo para isolar um familiar com suspeita de coronavírus em todas as moradias (SEGATA, Jean, ANPOCS. Cientistas Sociais e o Coronavirus, Boletim 2, março 2020), não é possível ter condições de um espaço exclusivo para estudo – daí o fato de muitos estudantes utilizarem as bibliotecas e laboratórios de informática de suas instituições. O que dizer das estudantes mulheres, muitas delas mães, responsáveis pelo cuidado em seus núcleos familiares? Há de se reconhecer que o isolamento enquanto determinação é interpretado, sentido e vivido de formas muito distintas neste país de configurações continentais.

Com a consolidação dos cursos oriundos do PROLIND e PROCAMPO, programas destinados à criação de Licenciaturas Interculturais Indígenas e Licenciaturas em Educação do Campo, respectivamente, as distâncias e os processos de ensino e aprendizagem ampliaram-se ainda mais. Ir para casa é ir para a aldeia, ter responsabilidades com sua comunidade e família extensa, em um período tão crítico. Ir para casa é ouvir sobre saúde, doença, analisar lógicas de seu povo e lógicas não indígenas. Ainda que o acesso a computadores e internet fosse uma realidade nestes espaços, as aprendizagens que necessitam viver agora, não podem ser substituídas por uma disciplina da universidade. O que dizer do regime de alternância que organiza os calendários desses cursos? Alternar tempos educativos implica em reconhecer o conhecimento tradicional e colocá-lo em diálogo com os conhecimentos científicos. Logo, quando se propõe que aulas presenciais, sejam substituídas por aulas a distância, se exclui a dimensão da experiência, da oralidade, da ação necessária para perpetuar aqueles conhecimentos.

A portaria do MEC é clara em fazer uma sugestão e respeitar a autonomia das IES, mas cria uma orientação vaga e deslocada das políticas públicas educacionais que defendem a Educação a Distância. É necessário compreendermos que não se está adotando o EaD como ferramenta para enfrentar uma das maiores crises sanitárias que vivemos. A Educação a Distância pressupõe acompanhamento efetivo do estudante (papel do tutor), atividades direcionadas e disponibilidade de pólo de apoio presencial. Ou seja, quem não tem acesso à tecnologia e biblioteca, consegue desenvolver seus estudos no pólo. Onde não há pólo, há a estrutura da IES. Ambos os espaços permanecerão fechados por uma questão de saúde pública. Como seguir adiante com as atividades de ensino?

No momento em que estamos vivendo, é fundamental a ampla atuação das/dos pesquisadoras/es em Ciências Humanas, capazes de analisar localmente a realidade social do público de cada IES. Inserem-se aqui os profissionais que se dedicam aos estudos das políticas educacionais, das configurações socioeconômicas, dos processos de aprendizagem, das dinâmicas de circulação e transformação de conhecimentos tradicionais, bem como da organização do trabalho pedagógico e calendários acadêmicos. A atuação de todas/os é essencial aos processos de gestão universitária durante a pandemia.

 

Texto de Suzana Cavalheiro de Jesus

Núcleo de Estudos de Populações Indígenas da Universidade Federal de Santa Catarina

Comissão de Ciência, Educação, Ciência e Tecnologia da Associação Brasileira de Antropologia.