Em meio à pandemia, Instrução Normativa n.09 da FUNAI legitima a invasão de Terras Indígenas

29/04/2020 18:20

Nota de Repúdio à Instrução Normativa da FUNAI nº 09/2020 e ao ataque aos direitos dos povos indígenas no Brasil 

“O povo de vocês gostaria de receber informações sobre como cultivar a terra?”

“Não. O que eu desejo obter é a demarcação de nosso território.”

(Diálogo entre o general R. Bayma Denys e Davi Kopenawa, durante audiência com o presidente José Sarney, 19 de abril de 1989).

No dia 22 de abril de 2020, data em que se rememorou os 520 anos de contato dos povos indígenas do Brasil com os colonizadores europeus e em meio à pandemia de COVID-19, o presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Marcelo Augusto Xavier da Silva, emitiu no Diário Oficial da União a INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 9, de 16 de Abril de 2020. Visando regulamentar a “incidência e confrontação de imóveis rurais em terras indígenas tradicionais homologadas, reservas indígenas e terras dominiais de comunidades indígenas”, tendo como base a tipologia utilizada no Estatuto do Índio (Lei 6.001), de 1973, esta Instrução Normativa (IN 09/2020) de fato oficializa e legitima a invasão, exploração, loteamento, desmembramento e comercialização das Terras Indígenas (TIs) ainda não homologadas pelo Estado no território brasileiro.

Isto porque a IN 09/2020 altera o regime de emissão do documento denominado “Declaração de Reconhecimento de Limites” (DRL), que anteriormente era associada com o “Atestado Administrativo” (AA) fornecido pela FUNAI para atestar a situação geográfica de imóveis de terceiros em relação às terras indígenas regularizadas ou em processo de demarcação (cf. Instrução Normativa n. 3 / FUNAI, art. 1º, §1º).  Ao revogar a anterior Instrução Normativa n.3, datada de 20 de abril de 2012, e extinguir a necessidade dos AAs, esta IN 09/202 atribui à FUNAI apenas a emissão da DRL aos proprietários de imóveis rurais e possuidores privados, considerando somente as Terras Indígenas homologadas e ignorando as TIs delimitadas, TIs declaradas, TIs demarcadas fisicamente, TIs com portaria de restrição de uso, terras da União cedidas para usufruto indígena, bem como dos imóveis sobrepostos às áreas de referência de índios isolados. 

Ou seja, com a nova medida os povos indígenas das 237 TIs que estão em processo de homologação no país (alguns deles iniciados em 1982) estão agora mais expostos e vulneráveis às invasões, violências e esbulhos nos/de seus territórios tradicionais, principalmente em se tratando dos povos isolados. Os indígenas ficam, ademais, suscetíveis à acusação de estarem “invadindo ou depredando” as propriedades particulares situadas dentro dos territórios indígenas, agora  certificadas pela FUNAI.  

Cabe destacar que a referida IN 09/2020 articula-se intensamente com as pretensões e interesses da Medida Provisória 910 / 2019, a “MP da Grilagem”, e seus dois relatórios, em trâmite no Congresso Nacional. Segundo a Nota Técnica dos Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da FUNAI:

Trata-se de dispositivo normativo com amplo impacto sobre a realidade socioambiental brasileira e, por esta via, também sobre o que concerne especificamente a conflitos em torno da posse da terra e do aproveitamento de recursos naturais em TIs. Com a IN 09, e em vista da MP da Grilagem, invasores de TI poderão solicitar a DRL à Funai e, munidos desse documento, requerer junto ao Incra, por meio de cadastro autodeclaratório, a legalização dessas áreas invadidas. Ocupantes também poderão licenciar atividades econômicas como extração madeireira, inclusive em áreas interditadas em razão da ocupação de índios isolados, a exemplo da TI Piripkura e da TI Kawahiva do Rio Pardo, no Mato Grosso, cercadas e intensamente pressionadas por madeireiros.” (p. 8).

O orquestramento dos setores ruralista, madeireiro, garimpeiro e militar, presenças expressivas no Senado e Congresso Nacional, visando a posse e exploração dos recursos naturais dos territórios tradicionais indígenas, têm cada vez mais se intensificado e encontrado legitimidade e respaldo no atual governo, o qual é manifestamente contrário à garantia dos direitos fundamentais dos povos indígenas desde a campanha eleitoral. 

Vale lembrar que a FUNAI, durante o regime de ditadura civil-militar no Brasil (1964 – 1985), foi responsável por diversas práticas de tortura, assassinatos e outras práticas genocidas e etnocidas (vide Relatório Figueiredo, 1967), bem como comandou a retirada compulsória de povos indígenas de seus territórios tradicionais para atender às políticas de desenvolvimento econômico propostas pelos governos militares.

Importante também destacar que os direitos dos povos indígenas estão assegurados na Constituição Federal de 1988, que dispõe: 

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (Art. 231, Capítulo VIII – Dos Índios). 

 O NEPI manifesta publicamente seu repúdio a esta e demais medidas da política indigenista do Estado brasileiro que venham ferir os direitos originários dos povos indígenas e promover seu genocídio, violando seus direitos humanos e territoriais assegurados nacional e internacionalmente. 

Neste mês de abril, tempo consagrado à luta e resistência dos povos indígenas no Brasil, expressamos nosso respeito e apoio a todos os povos, organizações e lideranças indígenas nesta luta pela demarcação e regularização de seus territórios tradicionais e garantia de seus direitos historicamente conquistados.  Segue a mensagem da liderança Sônia Guajajara sobre a exploração dos territórios dos povos indígenas pelos segmentos ruralista, madeireiro e garimpeiro no país:

“A visão que você tem, de terra, é muito diferente da que a gente tem. Não dá pra você olhar para nós, povos indígenas, e pensar que a gente tem o mesmo entendimento de território como o seu, que é de exploração, destruição, pensando em lucro, em dinheiro. Para nós, o território é sagrado, precisamos dele para existir. Vocês olham para a terra indígena e chamam de improdutiva. Nós chamamos de vida.” 

(Fala de Sônia Guajajara em audiência pública sobre saúde indígena na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, ao discorrer sobre questões indígenas e direito a terras a senadora Soraia Thronicke (PSL-MS), em 11/04/2019).

Texto de Elis do Nascimento Silva e Alexsander Brandão Carvalho Sousa

 

Referências e reportagens relacionadas: 

INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 9, DE 16 DE ABRIL DE 2020http://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-n-9-de-16-de-abril-de-2020-253343033

Nota Tecnica do INA – http://apib.info/files/2020/04/2020-04-27-nota-tc3a9cnica-in-09.pdf 

Artigo 231 – Capitulo VIII “Dos Indios” / Constituicao Federal de 1988 https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_08.09.2016/art_231_.asp

https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-ppds/funai-edita-medida-que-permite-ocupacao-e-ate-venda-de-areas-em-237-terras-indigenas

https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/04/27/funai-edita-medida-que-permite-ocupacao-e-venda-de-terras-indigenas-sem-homologacao.ghtml

https://sustentabilidade.estadao.com.br/blogs/ambiente-se/funai-passa-a-considerar-apenas-terra-indigena-homologada-para-fins-de-conflito-de-terra/

http://apib.info/2020/04/28/nota-tecnica-a-instrucao-normativa-da-funai-no-092020-e-a-gestao-de-interesses-em-torno-da-posse-de-terras-publicas/

https://veja.abril.com.br/blog/matheus-leitao/nova-norma-da-funai-diminui-protecao-a-terras-indigenas-nao-homologadas/