Higino: sabedoria, generosidade e desafio

18/06/2021 17:02

 

Há um ano, no dia 18 de junho de 2020, não apenas o alto rio Negro, mas todos nós que acreditamos nas práticas guiadas pelos valores da diversidade e da interculturalidade, perdíamos para a COVID19, Higino Tenório Tuyuka, grande liderança indígena e educador e um dos fundadores da Escola Utapinopona- Tuyuka, situada na TI Alto Rio Negro, Amazonas.

Higino teve várias facetas e marcou a vida de seus parentes Tuyuka e também de diversas pessoas e povos. Aqui ressalto apenas algumas delas. O que posso falar a partir da minha experiência, é que Higino era um ser humano pleno, cuja presença preenchia de luz qualquer espaço, apaixonado pela vida, curioso, sábio, corajoso e generoso, desafiador. Um grande mestre e amigo.

Higino foi acima de tudo uma grande liderança Tuyuka, idealizador da Escola Utapinona-Tuyuka, localizada no alto Tiquié, Terra Indígena alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia/Amazonas. Junto ao seu povo conseguiu colocar em prática de maneira primorosa e original os direitos constitucionais indígenas da educação escolar específica. Em um contexto em que a educação escolar era marcada pela herança da educação missionária implementada pelos salesianos desde o início do século XX, os Tuyuka liderados por Higino, desenvolveram uma escola pensada pelo povo que ultrapassava as barreiras da instituição escolar se misturando com a vida da comunidade. Uma escola multilíngue com alfabetização na língua Tuyuka, tendo a língua portuguesa como segunda língua e a espanhola como terceira, o ensino efetivado via pesquisa com valorização dos conhecimentos indígenas e interlocução com conhecimentos científicos que geraram e ainda geram experiências de produção, circulação e registro de conhecimentos na língua tuyuka. Escola que, além do ensino fundamental, ousou implementar o ensino médio indígena, sem apoio do governo, e que formou e continua formando as diversas gerações de crianças e jovens Tuyuka autônomos, orgulhosos de si e do modo de vida Tuyuka.

Mas, além disso, Higino foi um pensador e educador que, a partir desta experiência prática de educação autônoma, desafiou os povos do alto rio Negro, e mesmo outros povos indígenas do Brasil, como também professores, estudantes e pesquisadores de grandes universidades a repensarem seus modos próprios de compreender o mundo, de produzir conhecimento e de educar.

Quando eu cheguei no rio Negro, em 2005, como parte da equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental, uma das minhas grandes expectativas era conhecer a Escola Utapinopona- Tuyuka que, já naquela época, era reconhecida como um modelo de escola indígena. Higino, seu irmão Guilherme e professores como seu sobrinho Geraldino, Bosco, os Josés, Glória e tantos outros, junto aos antropólogos do ISA, Aloisio e Flora Cabalzar e ao linguista Gilvan Muller, estavam há alguns anos neste processo de construção da escola e de fortalecimento da língua Tuyuka, que há décadas vinha sendo substituída pela língua Tukano. Para mim, a escola Tuyuka e, especialmente, a convivência com Higino, foi uma grande escola da vida. Com meus 25 anos, após 3 dias de viagem e atravessar algumas cachoeiras, cheguei à paradisíaca comunidade de Moopoea (São Pedro), criada pelos irmãos Guilherme e Higino que, com sua maloca imponente e ampla, onde os Tuyka estavam retomando a realização de ritos cerimoniais, era a mais apreciada daquele rio pelo modelo de educação escolar. Era apreciada também pela beleza de suas roças, igarapés e cachoeiras e pela vitalidade das práticas culturais e qualidade de vida.

Nunca esqueço a primeira vez em que vi Higino e como ele me olhou do seu jeito: acolhedor e desafiador. Provavelmente por perceber minha inexperiência, me desafiava como assessora, antropóloga e pessoa, e sempre me surpreendia com perguntas instigantes: Melissa, eu posso te contar a historia dos meus antepassados, mas você sabe quem são os seus? De onde vieram seus avós, bisavós? Um antropólogo precisa saber isso. Melissa, você sabe de onde vem a água que você bebe ou você compra água em garrafas plásticas? Melissa, como os brancos podem deixar as pessoas viverem em favelas, passando fome? Sem ter onde dormir e comer. Porque não acolhem todas? Melissa, acho que você é uma aventureira, um dia ele me disse, insinuando que eu não duraria muito tempo no rio Negro, que estava ali a passeio. Observava se eu conseguia acordar cedo, carregar água, comer quinhampira, participar das festas, interagir com as pessoas. Não tinha hora. Até tarde da noite ele visitava nossa equipe, na época eu, Aloisio e Pieter, e fazia suas perguntas, comentários, nos instigava a pensar na política de educação ou na gestão dos conhecimentos Tuyuka. Não tinha dia: domingo cedo da manhã, ele já estava na nossa casa, perguntando: isso é hora de ainda estar dormindo? Foi ele que incentivou sua filha Dulce a me desafiar a primeira vez para ir trabalhar na roça, sair das ideias e entrar na vida, fiz o serviço completo e quase não consegui dormir a noite de tanta dor que senti no corpo.

Naquela época, a experiência da escola Tuyuka já havia impactado o modo de funcionamento de escolas vizinhas do rio Tiquié e era vista como inspiração para outras escolas do rio Negro e para a própria secretaria de educação do estado que em conjunto com FOIRN, ISA e outras instituições parceiras, estava interessada em adotar a educação escolar indígena como uma espécie de modelo para a região. A escola Tuyuka e Higino Tenório invertiam a lógica do sistema: os tuyuka receberam ao longo de alguns anos equipes da secretaria de educação que vinham observar o cotidiano da escola e aprender com Higino, professores e alunos como se construir uma experiência exitosa de educação escolar indígena. Isso em uma região marcada pelo histórico do ensino missionário era muita coisa. Higino costumava ressaltar sobre as pesquisas na escola Tuyuka, que para além dos resultados alcançados, em formas de relatórios ou livros, também eram importantes as experiências engendradas nesses processos, que reuniam gerações em torno da circulação de conhecimentos fundamentais para a vida.

Higino, como grande referencial para a sua região, compôs e ajudou a construir a política municipal dos Assessores Pedagógicos Indígenas, que substituía a noção antiga de um supervisor pedagógico que fazia o acompanhamento de escolas, por uma noção contemporânea em que professores/coordenadores indígenas que tinham acumulado grande experiência em educação escolar indígena iriam acompanhar as escolas da região e apoiar na implementação de modelos de gestão e metodologia da escola indígena de acordo com cada realidade. Higino também teve papel central, como outras lideranças da região, no debate sobre a construção e aprovação junto ao Ministério de Educação, o primeiro Plano de Ações Articuladas Indígena, no Brasil, um plano interinstitucional de educação municipal implementado em São Gabriel da Cachoeira, que infelizmente foi engavetado devido a uma mudança de gestão. E finalmente, com toda paixão que tinha pela possibilidade de diálogo frutífero entre conhecimentos indígenas e não indígenas, Higino colaborou com a FOIRN e o ISA ativamente, trazendo as experiências da escola tuyuka para o delineamento de uma proposta de um instituto de conhecimentos indígenas e pesquisa no rio Negro, na discussão de temas como manejo ambiental e mudanças climáticas, territorialidade e alternativas econômicas.

Higino, além de tudo era um ser dotado de grande curiosidade e tinha o espírito aventureiro, um conhecedor Tuyuka e um antropólogo do seu povo e dos outros povos indígenas e não indígenas. Por muitos lugares ele andou, contando sobre o modo Tuyuka de conhecer e educar e sobre a experiência de uma educação escolar indígena Tuyuka, ele ia conhecendo outras experiências e ao mesmo tempo desafiando os pilares do modo de educar ocidental seja tanto nas escolas como nas universidades.

Uma das memórias que quero trazer, foi de uma dessas andanças em que acompanhei Higino, junto a Adeilson, ecólogo do Programa rio Negro, Madalena e Alonso Baniwa, escola Pamaali, a uma viagem a minha terra natal, Santa Catarina, para participar, a convite da antropóloga Antonella Tassinari, de um importante congresso internacional sobre a temática da educação intercultural, em 2009, XII Congresso da ARIC (Association Pour la Recherche Interculturelle), com povos vindos de vários lugares apresentarem suas experiências de educação, inclusive grande nomes do pensamento decolonial. A fala firme e inovadora de Higino causou tanto impacto nos presentes, que inspiraram a Antonella a escrever um artigo sobre as múltiplas concepções e vivências da infância e sobre o que as crianças indígenas podem ensinar para quem já foi à escola, no qual nos convida a pensar sobre o que desaprendemos quando passamos a freqüentar escolas [convencionais], a partir da idéia colocada por Higino, “sábio mestre Tuyuka”, durante o congresso ao ser indagado sobre alguns resultados positivos das escolas dirigidas pelos Salesianos na região do Rio Negro, comprovados em estatísticas que colocavam São Gabriel da Cachoeira com o maior índice de alfabetização do Brasil. Higino respondeu que, embora esses índices tenham medido o que a escola salesiana ensinou, não havia nenhum índice que poderia medir o que as crianças indígenas deixaram de aprender sobre suas próprias culturas freqüentando essa escola. Higino referia-se aqui à riqueza dos conhecimentos Tuyuka e indígenas.

Mas foi também a partir dessa viagem que se estreitaram minhas relações com Higino e depois com os Tuyuka. Em Florianópolis, Higino deliciou-se ao conhecer a tainha preparada pela minha mãe e sua prima, divertiu-se comendo pinhão e bebendo quentão em uma festa junina, encantou-se com as montanhas que cercavam a ilha e ao visitarmos o mar aberto da praia do Moçambique, ficou fascinado com a sua imensidão. Mas nos advertiu que para os Tuyuka quando observamos uma paisagem pela primeira vez que nos impressiona, não podemos prender nosso olhar e atenção por muito tempo, pois corre o risco de nossa alma ser capturada pela paisagem e isso nos enfraquece. Na minha cidade natal foi junto com Higino que visitei meu sobrinho recém- nascido pela primeira vez. Ao passear comigo e com meu pai na beira do rio Itajaí, Higino se encantou com os barcos, mas observou que as capivaras andavam pela rua, pois haviam sido deslocadas de seu habitat natural e duramente chamou minha atenção para a poluição do rio: “esse rio é um rio morto”, me fazendo pensar.

Foi ao conhecer minha terra natal e ser acolhido e recebido com festa pela minha família, que nossos laços se estreitaram. Lembro que Higino me falou, “Agora Melissa eu entendo quem você é e de onde você veio, qual o seu lugar na sua família e qual o significado de você estar morando e trabalhando conosco no rio Negro”. Voltando para sua comunidade, ele contou para os homens e mulheres que passaram a me receber com mais afeto. A partir daí, pude desenvolver um trabalho da linha de pesquisa do ensino médio Tuyuka sobre conhecimentos femininos para alimentação e saúde, em que Dulce sua filha era uma entre outras moças Tuyuka que coordenava a linha. Higino nos advertia: nada de ficar fazendo apenas artesanato para venda, isso é coisa das freiras. No fundo ele estava preocupado em formar os jovens para participar de grandes rituais, para produzir fontes alternativas de renda, mas também para realizar as atividades simples, como pesca, caça, culinária. Ele costumava ressaltar a importância de se valorizar os conhecimentos e práticas relacionados à alimentação, pois essa era a base do sustento autônomo da vida. Trabalhamos então culinária, cerâmica e pinturas faciais e corporais.

Anos depois, em 2012, Higino participaria de um outro seminário na UFSC, dentro do projeto Conhecimentos antropológicos sobre povos indígenas do Rio Negro e vice-versa, coordenado pela Antonella Tassinari, em que, esse grande conhecedor e educador Tuyuka compartilharia com o também grande pesquisador e professor da universidade de Cambridge, Stephen Hugh-Jones, a função de comentar as pesquisas que vinham sendo realizadas por pesquisadores no Noroeste Amazônico. Na época os primeiros pesquisadores indígenas estavam ainda em formação na UFSC, hoje mestres, doutorandos e doutores e acompanhavam atentos na plateia. Higino desafiou todos os presentes com seus comentários a pensar sobre conhecimento, do ponto de vista Tuyuka.

Quando o Higino foi internado com COVID-19, Flora e eu reunimos recados de incentivo de pessoas queridas para Higino e vieram mensagens de várias pessoas espalhadas pelo rio Negro, pelo Brasil e pelo mundo, querendo muito bem ao Higino e reconhecendo sua importância marcante nas suas vidas e além. Em um dos recados, Claudia Bandeira de Mello, da Funai, falou para Higino que ele era um dos maiores educadores que ela já conheceu, e que poderia se sentar tranquilamente à mesa com grandes nomes da educação do Brasil e do mundo. Faço das palavras dela, as minhas palavras.

Sentirei muita falta da sua presença, da sua palavra, mas sobretudo, da suas gostosas gargalhadas. Mas, como me disse a amiga e antropóloga rio Negrina Rosi Whaikon ao tentar me consolar e se consolar: “o Higino será para sempre o nosso mestre e nosso guia”. Nas palavras de Paulo Freire: O educador se eterniza em cada ser que educa. Higino Tuyuka presente!

*Higino Pimentel Tenório, mais conhecido como Higino Tuyuka faleceu aos 65 anos, em 18.06.2020, em Manaus, Amazonas.

Texto de Melissa Santana de Oliveira, antropóloga, pesquisadora associada ao NEPI/UFSC

Abaixo, durante o Encontro ARIC, UFSC, 2009: Adeilson Lopes, Alonso Garcia Baniwa, Antonella Tassinari, Madalena Paiva Baniwa, Melissa Oliveira, Higino Tuyuka.